Os três últimos dias de campo em Tuktoyaktuk foram dedicados ao mapeamento do Pingo Canadian Landmark, uma área protegida imediatamente a oeste de Tuk, caracterizada pela presença de vários pingos e ricos ecossistemas litorais e estuarinos.

Os pingos foram desde que comecei a interessar-me pela geomorfologia das regiões frias, uma das formas de relevo que mais curiosidade me despertaram. Lembro-me perfeitamente das aulas de Geografia Física II e de mestrado com o Prof. Brum Ferreira, em que mostrava slides extraídos de livros sobre o norte canadiano, em que curiosas colinas pontuavam a paisagem do delta do Mackenzie. Foi com ele também que aprendi sobre a génese dos pingos, e também me lembro bem do dia em que me emprestou o clássico livro do Washburn “Geocryology”, que de imediato fotocopiei e li com interesse. Isto foi no início e em meados dos anos 1990, em que o acesso à bibliografia era muito difícil, tempos em que as bibliotecas eram muito valorizadas e em que escrevia cartas e emails a cientistas polares, para que me enviassem cópias daquelas referências mais difíceis. Foi muito mais tarde, já em 2010, em Svalbard que vi ao vivo o meu primeiro pingo… uma sombra ao pé dos majestosos pingos de Tuktoyaktuk, que vi pela primeira vez em 2018.
Os pingos são das formas de relevo mais curiosas dos ambientes com permafrost, consistindo em colinas circulares, aproximadamente em forma de domo, com uma altura acima das planícies que os rodeiam, que pode atingir mais de 40 metros e com um diâmetro de poucas centenas de metros. Parecem grandes borbulhas a afetar a pele da Terra. O interior dos pingos é composto por um núcleo de gelo maciço, que se foi formando lentamente à medida que a água subterrânea foi sendo sugada e expandindo ao congelar, empurrando para cima o solo superficial. Com este processo de segregação de gelo no solo, a borbulha vai crescendo, sempre alimentada por água das áreas envolventes. Quanto mais cresce o pingo, mais fria a sua superfície durante o inverno, pois vai ficando menos protegida pela neve que deixa de se acumular no seu topo pela ação do vento. Contudo, no ciclo de vida de um pingo, vai chegar o momento em que este, naturalmente, vai começar a degradar-se. Isso acontece, porque com o aumento da altura do pingo e com um acentuar da convexidade, a ação do vento no solo vai ser de tal forma importante, que o vai começar a erodir, removendo a proteção do núcleo de gelo, que assim vai começar a fundir. O estádio final da vida de um pingo, é uma colina com uma estranha forma anelar, correspondente ao limite exterior da colina original.

Apesar de o Canadian National Landmark dispôr de um bom levantamento por LiDAR de 2004 e de o pingo principal ter sido já levantado por um drone há alguns anos, a área carecia de um bom levantamento aéreo que permitisse gerar um ortofotomapa de muito alta resolução e um modelo digital de superfície. Esse foi o desafio que o Dustin Whalen se lembrou de nos colocar e que consistia em levantar os cerca de 16 km2 do parque em apenas 2 dias de trabalho de campo. Era uma tarefa praticamente implossível voando com um drone abaixo de 120 metros, limite que não quisemos ultrapassar pelas limitações da nossa autorização de voo no Canadá e também por questões de segurança, pois há um aeroporto próximo e algum tráfego aéreo de helicópteros e avionetas. Além disso, quisemos sempre operar dentro de linha de vista. Se a isto adicionarmos os constrangimentos meteorológicos, especialmente o vento forte, que limitou os levantamentos, bem como as limitações logísticas no acesso ao helicóptero para nos deslocarmos, facilmente se deduz que seria preciso muita sorte para conseguir cartografar todo o parque num período tão curto.

A má notícia foi que, ao contrário do previsto, não teríamos helicóptero no 1º dia de campo. Isso inviabilizou logo a estratégia que tínhamos previsto, que consistia em ser largados em vários locais, de forma a voar cerca de 2 horas em cada um deles e a assim ir cobrindo sucessivamente todo o território do parque. A opção foi iniciar os voos desde a estrada de acesso mais próxima do parque, o que permitiu apanhar uma pequena esquina do parque, enquanto os nossos colegas da Natural Resources Canada deslocavam uma lancha pneumática de um porto em Tuk, por estrada, para um pequeno porto perto do parque. Às 14h iniciámos a viagem de lancha por canais que os nossos colegas ainda não conheciam e sem ter a certeza se conseguiriamos passar por alguns baixios, acabámos por conseguir chegar a um setor que nos permitiu iniciar os voos com o drone pelas 15h30. Às 18h mudámos de local e estivemos a voar até às 21h, situação só possível nas regioões polares, uma vez que o sol permanece no céu praticamente toda a noite. No ano passado, à meia noite ainda estávamos a fazer missões.



Finalmente, no segundo dia e depois de passarmos grande parte da “noite” a carregar as baterias do drone e fazer o download dos dados, tivemos acesso ao helicóptero. Depois de algumas voltas em torno do sítio escolhido para verificar se havia ursos, e apetrechados de latas de “bear spray”, rádios VHF marinhos e aeronáuticos e de um sistema de posicionamento GPS, iniciámos mais um dia intensivo de trabalho, que só terminou às 19h num outro local, e porque o vento já soprava a 11 m/s. Normalmente quando ficamos isolados no terreno no Ártico canadiano, levamos sempre connosco “bear spray” e, frequentemente, um guia local armado ou uma arma, de modo a precavermo-nos de possíveis ataques de urso. No ano passado, em Herschel Island/Tiktitaruk, tivemos mesmo um urso polar fémea com uma cria a cerca de 750 metros e tivemos que suspender o trabalho e regressar ao acampamento base. Este ano, uma vez que o helicóptero estava sempre a cerca de 2 minutos de distância e como estávamos sempre em grupos de pelo menos 4, e pouco tempo em cada local, optámos por prescincir da arma. De qualquer modo, em Tuk, nesta época do ano, os ursos polares são extremamente raros e os grizzlies, menos agressivos, são os mais frequentes. Por outro lado, o constante vai e vem do helicóptero e a vigilância do piloto também nos deixaram mais descansados. Independentemente disso, dois dos membros da equipa ficaram sempre em cima de pequenas colinas, com radio e bear spray, de modo a controlar as proximidades, bem como o drone e o possível tráfego aéreo de baixa altitude.


O resultado destes 1,5 dias de trabalho foi uma cobertura de cerca de 80% da área do parque, com as restantes áreas a virem a ser mapeadas pelos nossos colegas da NRCAN nas próximas semanas.
A campanha ainda iria ter mais um dia de trabalho a cartografar a área de Toker Point, cerca de 30 km a nordeste de Tuktoyaktuk, onde há arribas em rápida degradação e um interessante sistema dunar. Contudo, devido ao vento muito forte, tivemos que cancelar a missão e acabámos por regressar um pouco mais cedo a Inuvik, iniciando a viagem de 3 dias de regresso a Lisboa. Fica no terreno a equipa do NRCAN/GSC juntamente com o Daniel Pinheiro durante mais duas semanas. Eu, depois de umas férias de agosto, estarei de regresso ao sub-Ártico canadiano com a Carla Mora e o Pedro Freitas no âmbito do projeto THAWPOND, apoiado pelo PROPOLAR – Programa Polar Português. Nesse projeto iremos continuar o estudo das lagoas termocársicas, em particular no que concerne às suas propriedades físicas, químicas e microbiológicas, e à forma como as poderemos caracterizar através de deteção remota. Este é, aliás o tema de tese de doutoramento do Pedro Freitas, que acabou ontem de receber a grande notícia de que terá uma bolsa financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Parabéns Pedro! Que excelente forma de concluir a campanha! Os próximos meses serão dedicados a processar os dados recolhidos no terreno e a publicar os resultados.

O projeto Nunataryuk é financiado pela Comissão Europeia no quadro do programa Horizon 2020 e apoiado pelo Programa Polar Português.
Fun tástico !!!
Que fixe ainda não tinha visto este blog.
E aterrei logo nos pingos! Ainda bem que chegaste lá. Pena os ursos não vos terem visto 🙂
Abraços e continuação de excelentes trabalhos.
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